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Esquecer

“Não sonhas. Morres um pouco de manhã e ao meio dia quando o sol mais queima. Tens de continuar. Tens de esquecer. Não aguentas mais. Tens de acabar, matar, recomeçar a viver. Só que ela está presa por dentro e tu agarrado a ela por um nó da garganta e não sabes o que deves deitar fora, arrancar, vomitar para que ela te saia de dentro. Sais à noite com definitivos propósitos de não voltares sozinho. Compões dentro da cabeça uma mulher com um bocadinho disto e um bocadinho daquilo e esperas que bata certo. Levas um bocado de tecido rasgado e queres encontrar o todo. Mas não encontras ninguém. Pior, encontras alguém que te vem provar sem remissão que não a vais substituir tão facilmente porque não há nada no mundo inteiro depois dela senão um deserto de tempo que se estende à tua frente onde tudo se torna insignificante e pequenino. Começas a beber, a fazeres-te mal, porque estás triste e não acreditas em nada senão na dor. Queres morrer e não podes e nem sequer coragem tens para te matar. E quando ainda pensas poder voltar atrás, também sabes que não é possível voltar atrás porque tu estás num mundo e ela noutro, os dois que tão depressa se afastam, encerrados em planas fotografias em que estão abraçados e nus e já não somos nós.”

Pedro Paixao in “Nos Teus Braços ” , 1998

Dois meses de Alucinações da Alma

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48

Explicação da eternidade

“devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.”

José Luís Peixoto in “A casa, A escuridão”

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41

(Último) Abraço

“Um abraço.Um abraço é tudo o que eu te peço antes de partires. E porque um beijo já seria de mais e um aperto de mão saberia a pouco, eu peço-te um abraço!
Que o calor dos nossos corpos se funda nesse abraço sem fim. Que guardes de mim a lembrança deste contacto reconfortante, que eu ter-te-ei para sempre no meu coração.
Falaste-me de terras distantes que pensava que só existiam em sonhos, quando o calor da cama nos arrasta para essa terra de ninguém em que todos podem ser reis… um dia…
Não te levei a sério quando me disseste que terias de partir em breve, que este mundo já pouco se aparentava com a tua morada, que a tua vontade… ah! a tua vontade… essa já não te pertencia…
Como fui tola em acreditar que nada do que me dizias aconteceria. Tu bem que me avisaste, sei que referiste desilusão e desespero nos teus longos monólogos em que eu apenas ouvia a tua voz, com um sorriso nos lábios, sem assimilar o sentido das tuas palavras.
Para mim o sempre e a eternidade fundiram-se com os sonhos de uma vida por viver. Queria-te a meu lado… para sempre, e não te deixei partir, mesmo quando seguias já por essa estrada que te levou à eternidade…
Irremediavelmente partiste…
Não deixaste qualquer rasto para que eu não te pudesse seguir. Disseste que este mundo ainda era o meu, mas para ti jamais voltaria a ser… Partiste… E não me abraçaste uma última vez…”

Cláudia Medeiros

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12

Chamar a atenção

“Quase todas as manhãs, uma certa mulher da nossa comunidade sai a correr de sua casa, com o rosto branco e o casaco ferozmente desfraldado. A mulher grita: “Acudam, acudam!”, e um de nós precipita-se e segura-a até que os seus medos acalmem. Sabemos que está a fingir, na realidade, nada lhe aconteceu. Mas compreendemo-la, porque dificilmente haverá um de nós que não tenha sido levado alguma vez a fazer precisamente o que ela faz, e, em todos os casos, foram necessárias todas as nossas forças, e também as forças dos nossos amigos e das nossas famílias, para nos sossegar.”

Lydia Davis, Contos Completos

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30

Solidão

“O verão separa as pessoas. O Paulo e Paula devem estar em Berlim. O Paulo C. Domingos no Porto Covo, em férias. E eu onde estarei? Visto que não me sinto presente em lado nenhum. (…) Enlouquecerei, provavelmente. Mas não tem importância perder a razão. Outra razão se adquire, certamente, semelhante à da ave, ou do peixe, ou ainda a da vida da própria terra. (…)

Mas, no fundo, já nada é muito importante. Já não amo. Já não me dá gozo foder. Já não como com prazer. Durmo mal, canso-me depressa. Não sei onde ia. Chateia-me falar. Tudo me aborrece. Nenhum consolo para esta solidão. Às vezes, penso que são manias minhas. Que me disponho para este estado de grande desolação, propositadamente. Depois, tenho muito medo de saber que detesto o mundo. E medo de não encontrar remédio para isto.

Al Berto, in “Al Berto Diários”, 1984

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20

A única maneira de nos livrarmos de uma tentação é cedermos-lhe.

” Mas o mais corajoso homem entre nós tem medo de si próprio. A mutilação do selvagem sobrevive tragicamente na autonegação que nos corrompe a vida. Somos castigados pelas nossas renúncias. Cada impulso que tentamos estrangular germina no cérebro e envenena-nos. O corpo peca uma vez, e acaba com o pecado, porque a acção é um modo de expurgação. Nada mais permanece do que a lembrança de um prazer, ou o luxo de um remorso. A única maneira de nos livrarmos de uma tentação é cedermos-lhe. Se lhe resistirmos, a nossa alma adoece com o anseio das coisas que se proibiu, com o desejo daquilo que as suas monstruosas leis tornaram monstruoso e ilegal. Já se disse que os grandes acontecimentos do mundo ocorrem no cérebro. É também no cérebro, e apenas neste, que ocorrem os grandes pecados do mundo.

Oscar Wilde, in “O Retrato de Dorian Gray”

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28

Porque se matam as saudades

“Não sonhas. Morres um pouco de manhã e ao meio dia quando o sol mais queima. Tens de continuar. Tens de esquecer. Não aguentas mais. Tens de acabar, matar, recomeçar a viver. Só que ela está presa por dentro e tu agarrado a ela por um nó da garganta e não sabes o que deves deitar fora, arrancar, vomitar para que ela te saia de dentro. Sais à noite com definitivos propósitos de não voltares sozinho. Compões dentro da cabeça uma mulher com um bocadinho disto e um bocadinho daquilo e esperas que bata certo. Levas um bocado de tecido rasgado e queres encontrar o todo. Mas não encontras ninguém. Pior, encontras alguém que te vem provar sem remissão que não a vais substituir tão facilmente porque não há nada no mundo inteiro depois dela senão um deserto de tempo que se estende à tua frente onde tudo se torna insignificante e pequenino. Começas a beber, a fazeres-te mal, porque estás triste e não acreditas em nada senão na dor. Queres morrer e não podes e nem sequer coragem tens para te matar. E quando ainda pensas poder voltar atrás, também sabes que não é possível voltar atrás porque tu estás num mundo e ela noutro, os dois que tão depressa se afastam, encerrados em planas fotografias em que estão abraçados e nus e já não somos nós.”

Pedro Paixao in Nos Teus Braços ” , 1998

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Excerto sobre o Amor

“É, afinal, o que se passa em toda e qualquer actividade, nenhum acto, considerado em si e por si mesmo, é belo ou vil, tal como as nossas ocupações de agora – beber, cantar, conversar… -, nenhuma delas têm só por si mesmas qualquer beleza. O que determina essa qualidade num acto é o seu modo de realização: se o realizamos de forma bela e digna, ele resulta belo, em caso contrário, vil. Assim acontece quando amamos: nem toda a espécie de amor é bela e digna de elogios, mas apenas aquela que nos incita a amar com nobreza.

(…)

o amor que restabelece o nosso estado original e procura fazer de dois um só, curando assim a natureza humana.”

Platão in O Banquete